sexta-feira, 29 de junho de 2012

Procura e efeito

Precisava de algo para desestruturar-se, parecia ter perdido seus grandes incentivos. Já não achava graça na praça da cidade, na pipoca do Seu Antônio, nem no rio que passava devagar por sob a ponte. Já não via Maria tão bonita como antigamente, a sensação de velocidade já não o satisfazia, já havia cansado de ser o rapaz ideal. E na cidade diziam "André é um bom garoto", "partido perfeito", "não se fazem rapazes assim". Nem ele sabia como era, achava irreal que outros pudessem vê-lo tão cegamente. E parecia que essa cegueira desmedida havia o alcançado nos últimos tempos, ele enxergava mas não via nada. Precisava quebrar-se.

Optou pelas mudanças convencionais, visitou o museu esperando que a sabedoria dos tempos antigos lhe ensinasse como viver os atuais. Não funcionou. Decidiu visitar o hospital, ver pessoas em estágio terminal. Esperava que o desespero da vida que deixa de ser vida em momento nenhum pudesse fazê-lo perceber uma alegria que para ele fazia falta. Também não deu certo. Como última alternativa, decidiu aprender com sua própria vida, visitou um psicólogo para saber o que havia de errado. Mas o psicólogo também não sabia o que dizer. André tinha um problema que não existia e a falta da excitação continuava a ser a causa.

Voltou pra casa, teve a pior das ideias. Pegou um revólver, colocou por sobre a mesa ao lado de uma garrafa de uísque meio cheia - ou meio vazia. Bebeu, pensou, bebeu, pensou, até que a coragem veio. Fechou o casaco, deu uma última olhada para os móveis, pra ver se a casa estava arrumada. "Não quero que me encontrem numa espelunca bagunçada", pensou. Pegou seu calibre 22 e o encarou por alguns segundos, resmungando algumas palavras. "Quem diria, comprei você para proteção..." e mal sabia que deveria proteger-se era de si mesmo.

Sem rodeios, colocou na cabeça e engatilhou a arma. Seu coração começou a pulsar forte, bombeando sangue para todo o corpo como uma pequena maria-fumaça. Em pouco tempo, já estava com o rosto todo suado, respiração ofegante, nervoso com a situação. Foi aí que ele percebeu algo engraçado. Estava excitado de novo. Adrenalina no auge, sentia-se até mais forte. Nada nem ninguém havia o deixado naquela posição anteriormente, se sentia renovado, talvez até justificado.

Abaixou o revólver e sorriu de felicidade. Colocou a arma sobre a mesa e disse: "- Amanhã a gente tenta de novo!" e foi dormir como a versão mais feliz do André que já havia existido.

T.Rodrigues


domingo, 24 de junho de 2012

O problema da companhia

Pouco se sabe sobre essa história: Menino branco, olhos e cabelos (longos) castanhos, não era muito alto, magricela e bem afeiçoado. Um dia, foi para fora da casinha onde morava (numa fazenda, num interior qualquer de Minas Gerais), olhou para o céu e pensou: "tempo bom para nadar". Pegou uma camisa seca, vestiu. Um beijinho na mãe, acenou para o pai e foi-se embora. Não muito longe de lá estava a cachoeira escolhida pro mergulho. Vendo que o sol se escondia cada vez menos, decidiu correr um pouquinho. Chegando perto, foi despindo-se apressadamente, se jogou de corpo aberto na água. Brincou até onde não dava mais, foi até onde não dava pé, se refrescou e decidiu parar um pouco na borda, para apreciar a vista. Debruçou-se sobre o cascalho e as pedras, bem na beira, olhou a água com pouco movimento, em contraste com a violência da que batia bem abaixo do centro da cachoeira. Viu seu reflexo na água, feições que vira naquele mesmo dia pela manhã. Mal percebeu-se. Vindo não sei de onde, a água aumentou sua intensidade, quando somada a queda, formou quase uma onda em direção ao garoto. Quando a onda passou, o reflexo do garoto na água mudou. Viu um rapaz, olhos e cabelos (ainda longos) castanhos, blusa pólo e indecisão no olhar. De tanta surpresa, nem se moveu, continuou observando a cara nova que aparecia na água. A cachoeira pressionou de novo, outra onda parecia se formar. Olhou para o reflexo, viu um moço, cabelo curto recém cortado, terno, gravata e tristeza no olhar. Esse último reflexo abriu a boca levemente para falar alguma coisa, mas não deu tempo, outra onda veio. Dessa vez um senhor de idade, dos reflexos o mais triste, miserável. Não dava para distinguir muita coisa, mal se via a roupa que vestia, mas esse conseguiu entregar o recado, sussurrando baixinho com dificuldade para falar: "Quer mesmo refletir um só?".

T.Rodrigues



quinta-feira, 21 de junho de 2012

Conselhos

Alguns conselhos que ouvi de pessoas sábias, numa compilação que fiz em mente. Talvez alguns conselhos meus, mas jamais saberei.

Quando alguém lhe fizer uma brincadeira de mal gosto, não se sinta ofendido. Entre na brincadeira e responda educadamente. A educação e a cortesia são duas coisas que pessoas má intencionadas não suportam. Compartilhe da piada, faça com que a pessoa veja não apenas uma piada sem graça, mas também uma total falta de propósito em suas ações.

Quando fizer caridade, não apresente ela a público. O sábio faz boas ações por que sente prazer em fazê-las, o tolo faz por que precisa ser visto. Desconfie sempre de pessoas que se gabam em fazer o bem, pois em seus corações não passam de crianças mimadas que precisam ser reconhecidas (à mil maneiras) por seus atos. Inclua nessa lista: políticos, governantes, chefes, enfim, todos que exercem um cargo de poder, pessoas que decidem sobre pessoas. Observe seus atos e reflita se suas boas ações não são propagandas, ou realmente são atos de verdade.

Sempre confie em si mesmo. (auto-explicativo)

Ame - por toda a imensidão do verbo -
o amor não é importante,

é o principal.

T.Rodrigues

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Quando ela terminou

Quando ela terminou
com o Beto, aprendeu a ser mais sólida
com o João, parou de ser tão sensível,
com o Daniel, deixou pra trás o cigarro
com o Carlos, começou a gostar de samba
com o Tiago, aprendeu a chorar como criança,
e com o Vinícius a sorrir como uma idiota.

E já não se sabia se era um coração, ou uma colcha de retalhos.

T.Rodrigues



domingo, 10 de junho de 2012

Epifania

Olhei para a porta da casa uma última vez. Percebi meus pés cansados, minha dificuldade em respirar, minha arritmia cardíaca, decidi pôr um ponto final nisso. Dei um passo para frente, para a direção oposta da casa, algo dentro de mim mudou. Decidi tentar a outra perna e ela respondeu prontamente. Um terceiro passo e eu estava começando a esboçar um sorriso: aquilo surpreendentemente estava me fazendo bem. No quarto passo já sentia meu organismo liberando a serotonina, a respiração voltando ao normal e já me sentia mais estimulado. Talvez esse fosse o estímulo necessário para que eu deixasse aquela casa, aquela moça para trás. E para trás eu não olhei. Um quinto passo e meu cérebro mandou uma mensagem para minhas pernas: "vamos correr!" e assim elas o fizeram.

Comecei uma corrida única, onde cada passo me afastava mais dela, cada passo me pedia para dar outro e outro, continuar me distanciando o máximo daquilo que parecia ser minha doença particular. Enquanto meu sistema neurológico dizia "continue correndo", meu corpo correspondia prontamente, o sorriso no meu rosto denunciava o bem que estava fazendo a mim mesmo. Me senti como o alcoólatra que diz "não" para o copo de uísque cheio, como o assassino que solta a arma, como o poeta que rasga a página do poema que o aflige. Uma aura única corria ao meu redor: me sentia justificado.

Lacan não explicaria melhor minha abordagem comportamental, meu vício foi diagnosticado na corrida, eu precisava me medicar. E nenhum fármaco do mundo já inventou um remédio para os males do coração. E nesse epifania louca eu percebi: quanto mais corria para longe, mais meu coração se sentia confortável. A cura que parecia impossível se tornou um pouco mais viável hoje.

Chegou a hora de tentar esse novo tratamento.

T.Rodrigues


quinta-feira, 7 de junho de 2012

A vida que se leva (Parte 1)

"O que se leva da vida é a vida que se leva", li em uma rede social qualquer, hoje pela manhã. Estava vivendo o dia normalmente, até que decidi ligar a televisão em um canal de notícias (um dos 30 que assino na tv à cabo) e acabei me deparando com a data de hoje: 7 de junho de 2012. Hoje faz um ano que vi Charlie pela última vez.

Naquela manhã ele acordou cedo, logo quando os primeiros raios de sol cruzavam nossa janela.

- Acorda pai! - e entrou correndo pela porta tropeçando e fazendo muito barulho, subiu na minha cama como se um tesouro o aguardasse perto do meu travesseiro.
- Charlie, quantas horas são? - perguntei, em um estado de meio-sonhando, meio-dormindo, olhando para o relógio e duvidando que o garoto tivesse me acordado às 6 da manhã. Mas eu estava feliz.
- É hoje pai, é hoje! Vamos, senão a gente perde o ônibus para ver a mamãe!

A mãe de Charlie (e minha ex-esposa) se chamava Rachel. Nos separamos em junho de 2010, logo depois de ela perder o emprego. Nós vínhamos de alguns meses de briga, reconciliação, mais e briga e mais reconciliação. Depois de algum tempo era só briga. Devido à necessidade, ficamos algumas semanas consultando com nosso terapeuta (doutor T.) e decidimos que uma separação amigável resolveria nossos problemas conjugais e familiares. Estávamos pensando na felicidade do nosso filho, um garoto de 4 anos que não precisava crescer em uma casa de pais brigões. Quando Rachel perdeu o emprego (grande arquiteta, numa grande empresa), entrou num estado de depressão profunda, o que foi bem traumatizante para Charlie. Mas o processo de separação aconteceu muito rápido e o juiz acabou optando por dar a guarda do garoto para mim.

No início foi bem difícil para Charlie. Ele era muito apegado com a mãe (e que garoto de 4 anos não é?) e o choque de não tê-la todas as manhãs foi grande. Mas a vida continua, foi um longo processo, mas ele começou a se acostumar em ver a mãe com pouca frequência. Mensalmente Rachel nos fazia uma visita, o garoto ficava excitadíssimo quando via a mãe aparecendo na varanda. "- Ela veio pai, ela veio! Hoje vamos jantar com a mamãe, você fez algo gostoso né?! - Pai, pai, pega o dvd do Pirata pra gente ver com a mamãe! - Dessa vez ela vai ficar né pai?" Ele sabia a resposta para essa última pergunta, isso me cortava o coração. Eu sabia que crescer sem uma mãe com certeza seria ruim para Charlie, mas parecia injusto ter uma mãe tão ausente, com visitas marcadas no relógio.

Em dezembro daquele mesmo ano, Rachel estava quase que completamente recuperada. Em seu tratamento, o psicólogo havia dito que seria benéfico para ela morar na cidade em que foi criada, 200km ao sul de onde morávamos com Charlie. Ela ouviu e acabou se mudando, o que de fato foi bom para ela. Sua melhora foi considerável, então decidimos que ela já poderia ver o filho com mais frequência. Ela morava perto, mas não tão perto, então decidimos também que além de recebermos Rachel em nossa casa, Charlie também poderia visitá-la quinzenalmente, de ônibus.

Os meses foram passando e parecia que tudo ia se ajeitando aos pouquinhos. Charlie passou a ver sua mãe mais vezes e parecia mais feliz. Meu relacionamento com Rachel melhorou consideravelmente, quando percebi que no fim da terapia, ela voltara a ser uma Rachel bem próxima do que era quando a conheci, aquela com quem me casei e fui feliz, mesmo que por pouco tempo. Mas esse era um outro assunto, nós dois éramos adultos e não queríamos confundir as coisas, nosso foco era a felicidade de Charlie e ele havia aceitado (finalmente) o fato de ter pais separados.

Era manhã do dia 7 de junho de 2011, feriado nacional e Charlie iria passar a semana na casa da mãe e voltaria para casa no sábado. Ele parecia iluminado naquela manhã. Acordou falante e alegre (como sempre acordara) mas havia algo diferente naquele dia. Quando olhei para ele, na mesa do café, o vi como se fosse um anjo. Garoto lindo, puxou os olhos verdes da mãe e meu cabelo liso, parecia ter sido esculpido sem cera (sinceramente). Mas olhar para ele naquela manhã, reluzindo, parecia um aviso divino que a alegria de um homem só encontra seu ápice quando está prestes a cair.

Quando acabamos de tomar café, uma ideia me passou pela cabeça. Já havia alguns meses que não via Rachel (desde que Charlie começara a fazer visitas quinzenais para ela), apenas trocávamos algumas mensagens no celular, umas ligações rápidas, mas sempre algo sobre Charlie. Olhando para meu filho, percebi que tinha saudade dela, saudade da nossa família reunida. Então pensei: "por que não dirigir até a fazenda hoje? São apenas duas horas e meia de viagem e eu preciso tirar o carro da garagem mesmo." Comentei com Charlie e ele ficou entusiasmado com a ideia, não só de pegarmos a estrada (o garoto adorava velocidade), mas acho que a ideia de ter nós três reunidos novamente, brilhou na cabecinha do garoto.

Então, Charlie e eu pegamos a estrada ao encontro de Rachel.


(continua)
T.Rodrigues

sábado, 2 de junho de 2012

Sabedoria de Criança


Queria eu saber das coisas que as crianças sabem. Elas sim, tem todas as receitas - aquelas que procuramos - e que fazem a vida funcionar. Não digo funcionar como em uma máquina, isso os adultos já tentam fazer. Mas como o vento: sopra quando quer, para onde quer, numa intensidade imprevisível e ainda sim se faz necessário para que a vida prossiga. O que me diz muito sobre nossa lógica de viver.

Os homens trabalham com as sentenças erradas, e fazem perguntas do tipo: "o que é preciso para ser feliz?".  Isso só mostra que além de procurarem respostas desnecessárias, as perguntas são contraditórias. Mal sabem que essa é uma pergunta dupla: antes de ser feliz é preciso ser... não é muito difícil entender.

Se você pergunta para uma criança o que é preciso para ser feliz, ela provavelmente dirá: "não sei". E se continuar observando, verá que alguns segundos depois ela nem lembrará do que você queria saber. Isso me diz tanta coisa! Pergunte-se: é necessário mesmo saber o que é preciso para ser feliz? Não seria tão mais fácil não sabermos, e apenas sermos...

T.Rodrigues

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Prosa de bar

Fumou um cigarro, deu uma tragada profunda, cruzou as pernas e começou a confessar:

- Ontem eu matei um cara.

Não sei bem dizer por que aconteceu. Muitos dirão que foi sem motivo, muitos vão se horrorizar, mas para mim parece ter valido a pena. Ou talvez ainda não descobri se valeu ou não.

Rapaz tranquilo, não fazia mal a ninguém - e talvez por isso me irritava tanto - sempre na dele, fazendo boas ações e esperando pela sorte na esquina. Ela, a sorte, nunca vinha, e ele continuava lá esperando, com um sorriso no rosto. Era o cara que acordava de manhã cedo, ia para a sacada do apartamento e respirava o primeiro ar da manhã, contente por ter acordado. Depois, voltava, tomava seu café e ia para o a faculdade acreditando que o dia seria bom se ele fosse bom com o dia. Cheio de ideais.

Respeitava tudo e todos, e as vezes até demais. Via a beleza das coisas simples, dos pequenos momentos, e julgava ser os mais necessários - os que um dia serão grandes - e os fazia com êxito. Havia grandes chances de, um dia, se você topasse com ele numa esquina qualquer, o flagrasse olhando para o nada e sorrindo. Ele dizia que as vezes ficava hipnotizado com as crianças apenas sendo crianças, ou casais se amando apenas como casais normais.

Isso tudo me irritava nele, e um dia percebi que era difícil mantê-lo vivo. Todas essas coisas, esses momentos demasiados insignificantes, me tiravam do sério profundamente, e essa afirmativa veio do contraste que ele tinha com os outros: eles sempre tinham mais sorte que esse cara, mesmo não sendo nada parecidos com ele.

Quando ontem, o vi chorar no quarto. Perguntei qual era o problema e ele disse: - A todos observo rindo, enquanto minha alma chora vazia. - E eu entendi o que quis dizer. A alegria dos pequenos detalhes havia consumido sua alma, e ele não se sentia mais capaz de participar de um deles: eram todos detalhes vindos de lugares onde as pessoas não os julgavam como importantes. Percebeu que cada sorriso valoroso viera de todo lugar, menos dele.

Conversando, vimos que não havia saída. Ou ele continuava seguindo a passos largos o caminho da solidão - e sabedoria - ou deixava tudo para trás. "A alegria reside na ignorância", um poeta pensou de longe. Então vimos que o melhor a se fazer era matá-lo, ali mesmo, naquela hora de reflexão. E assim o fiz, uma bala bem na cabeça, sem deixar possibilidade de sobrevivência.

Não me julguem mal, eu fiz um favor ao nosso amigo. Ele sabia que cada dia seria pior, se continuasse a perceber que a alegria que observava nas pessoas, além de não ser dele, era totalmente ignorada pelos sujeitos de sua existência. As pessoas não se importam com as coisas que realmente as fazem felizes.

Como eu o conhecia tão bem? Ele era eu, ontem.

T.Rodrigues