sexta-feira, 3 de junho de 2011

Voltar em Segurança

"Não sou capaz de lhe dizer o lugar em que estive meu bem. Há falcões planando na minha mente. E cada sorriso, e cada coisa que vi por lá, quando tentei lembrar, se esvaiu." Matthew Ryan


O alarme do celular toca. São 3 da manhã. A escuridão total não me ajudou muito a levantar da cama. Quando finalmente consegui tirar a coberta de cima de mim, lembrei o quão especial era esse dia. O qual diferente ele era pra mim.

Levantei da cama e peguei minha toalha. A melhor opção que tinha numa madrugada gelada de outono era tomar um banho bem quente. Abri a porta do quarto e fui na minha melhor velocidade silenciosa pro banheiro. Difícil foi na hora que desliguei o chuveiro para me enxugar. Mas consegui fazer essa proeza depois de alguns segundos criando coragem e batendo queixo. Já estava atrasado pro café da manhã. Ou da madrugada.

Minha mãe já me esperava na sala. Olhei pra ela, ela estava com um olhar tão pesado, tão triste. Fui logo dando bom dia com o melhor sorriso que tinha e agradeci por ela ter acordado junto comigo pra fazer o café. No fundo eu sabia que ela nem tinha dormido. O café estava maravilhoso: nem muito forte, nem muito fraco. Pãezinhos e biscoitos acompanhavam o cardápio da manhã. Eu sentei na minha cadeira predileta, todas eram basicamente iguais: madeira envernizada e assento baixo, mas essa era a única que não gritava quando sentavam nela. Fui pegando uma chícara a mais do café quente e vendo um jornal da madrugada qualquer. Era minha única opção na TV.

Quando terminei, fui logo indo direto para o banheiro escovar os dentes, eu já estava atrasado. Eram mais ou menos 3h40. Meu pai também estava acordado, sentado na beirada da cama, já de tênis. Dei um abraço forte nele e disse "bom dia pai, sabia que eu amo o senhor?". Já tinha tanto tempo que eu não reparava como era bom ouvir ele respondendo "eu também te amo filho." Com o olho basicamente cheio de lágrimas, respirei fundo e pensei: ainda não.

Quando eu sai de casa meu pai me esperava no carro. Não tinha mais nenhum outro na rua. Minha mãe ficou no banco de trás, sem falar uma palavra. Ela sabia que eu ia querer sentar no banco da frente. Foi exatamente o que fiz. Liguei o celular no som do carro, e comecei a escutar minhas músicas. Inevitavelmente, as músicas eram mais tristes do que pensei. Mais tristes do que eu pensava que poderiam ser. Mas a medida que elas foram tocando eu fui encarando o caminho.

Enquanto a noite corria alta na janela do carro, o vento soprava frio no vidro. Coloquei a mão pra fora da janela e comecei a senti-la congelar. Os sinais de trânsito passando de madrugada pareciam arco íris de três cores. As poucas pessoas que estavam já acordadas, estavam voltando do trabalho ou indo trabalhar. Todas com aquelas caras de que estão muito tristes com a rotina que possuem.

Fiquei olhando as ruas passando. As casas chegando perto, perto, depois passando ao meu lado e ficando cada vez mais para trás. Lembrei das coisas que já fiz em ruas como essa. As brincadeiras de pelada com o pé descalço no asfalto, as inúmeras pipas que já soltei em ventos como esse. A forma com que encarava tudo isso. Sempre esperando pelo que reservava o dia de amanhã, jamais pensando no que poderia fazer com o dia de hoje. Me arrependi disso enquanto meu pai dirigia.

O caminho foi encurtando... O carro foi ficando mais devagar. Começávamos a alcançar nosso destino. Nós três num silêncio ensurdecedor. Mas eu não sabia o que sentir. Não sabia quais atitudes poderia tomar. Se dava as mãos para meus pais, se soltava. As palavras foram fugindo da memória, e cada vez ficava mais difícil pensar no que estava acontecendo. Enfim chegamos ao hospital.

Não é muito complicado entender tudo. A menos de três meses descobri que tinha um tumor na cabeça. Bem atrás do olho esquerdo. A um mês, mais ou menos, ele começou a afetar minha visão. Os médicos não puderam adiar a data da cirurgia. Eu estava tomando remédios fortes para a dor, mas nenhum remédio evitaria que a cirurgia fosse necessária. Então ela foi marcada para hoje, às 8h da manhã.

Enquanto eles raspavam minha cabeça com uma máquina zero, foram me instruindo de como seria o nosso dia no hospital. Os médicos tentavam me fazer ficar calmo. Aplicaram um sedativo leve, só para diminuir o stress pré-operação. Meus pais olhavam pra mim de uma forma que é impossível descrever em texto, mas posso lhe adiantar que é um olhar do qual você se sente profundamente amado, e terrivelmente triste ao mesmo tempo.

A hora ia se aproximando e me deitaram na maca. Eu segurei a mão das duas pessoas mais importantes que conheci, e inevitavelmente agradeci por tudo que fizeram por mim, em toda minha vida. Eles eram o amor na forma mais física que presenciei. Minha cabeça começou a girar. Enquanto arrastavam a maca pelos corredores da ala cirúrgica, as cenas na minha mente iam e voltavam como faróis de carro numa avenida movimentada, na mais alta noite. Cada beijo que dei na vida, cada vez que disse "eu te amo", cada abraço que dei em primos, em tias e tios, meus cachorros de estimação, tudo passando em flashes rapidíssimos. Todos eles na estrada em que estava, só que todos na contra mão, indo para um lugar escuro, tom de sépia, que ia escurecendo e escurecendo até virar um túnel sem fundo. E eu no sentido contrário, deitado, olhando para o teto do hospital. Chorando.

Cinco médicos em volta da cama, a sala estava preparada. Chamei meus pais, e eles me beijaram no rosto. Minha mãe em prantos, meu pai com olhos banhados. Agora era comigo. Era minha força e vontade de viver que decidiriam o resultado daquela manhã. Esperava voltar em segurança. Cedi.

- Atenção senhores, por favor deixem a sala de operação. Vamos começar o processo.

T. Rodrigues

2 comentários:

  1. O final é feito a partir do otimismo do leitor! Queria que vocês pensassem no que poderia acontecer, na mantra de possibilidades.

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