segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Rugas

Penso que sinto e sei o que penso
Numa redoma de olhares
Não é fácil entender o recado
O espelho é complicado demais
Finjo que vejo, vejo que finjo
E nada além de interrogações barbadas
O olhar cansado diz mais da alma
A alma cansada reflete no olhar
A boca seca relata a falta
A falta que faz seca a boca
Em um passo volto no tempo
O senhor tempo passeia sem voltar
Encontro tudo em linhas paralelas
Combinam com as rugas do rosto
Pés de galinha são as memórias
memórias são pés de muitos animais
Os que rugem são os de dentro
Agora só o olhar expõe a fera domada
Pelo tempo, pelos versos, pelos tais.

T. Rodrigues

sábado, 2 de novembro de 2013

Outubro

- Vamos lá, termine o que começou - foi o que ouvi, quando as luzes se acenderam. Agora éramos três, num quarto de hotel - não se faça de idiota, pra quê protelar o necessário?
- Não tenho certeza... é mesmo necessário? Veja, talvez ele ainda tenha esperança - disse essas palavras olhando para o chão, um senhor nu, amarrado por cordas de ginástica. Ele tinha hematomas espalhados pelo corpo e estava inconsciente devido à agressão de alguns minutos atrás. Era madrugada de uma sexta feira de outubro, quando esbravejei, - calada! Preste atenção... ele mal respira agora.

Estava acompanhando de uma mulher. Ela era alta, cabelos compridos, olhos e boca vermelhos, estava em um vestido preto, longo, impecável. Para cada passo que dava, usava um flerte diferente e parecia que seu corpo falava. Apesar de toda sensualidade e persuasão, era difícil compreendê-la. Naquela hora, ela me incentivava a abandonar o homem ali, naquele chão frio do hotel. A noite foi se arrastando enquanto dialogávamos bebendo um uísque antigo, recomendado por ela, e assistindo o estado daquele senhor no chão. Eu estava desesperado por abandonar alguém assim, como se fosse lixo. Eu não queria.

- Você se importa? - a mulher me perguntou depois de um longo período de silêncio.
- O quê? Com esse homem?
- Claro, de quem estaríamos falando?
- Você poderia estar falando de forma abstrata. Apenas se eu me importo.
- Mas não é que você é perspicaz? - soltou uma risada e bebeu de seu copo.
- Diga logo onde você quer chegar. - estava cansado e agitado demais para jogar esse jogo.

Durante a pausa entre meu pedido e a resposta da mulher, comecei a me indagar algumas coisas. Eu estava ali, presenciando um homem amordaçado no chão e não fazia nada. Comecei a tentar me recordar de como chegarmos aqui, o que tinha acontecido? Não conseguia me lembrar. Em minha cabeça haviam apenas clarões e flashes do que poderia ter sido minha chegada ao hotel. Mas de uma coisa eu estava certo: cheguei sozinho.

Eu não poderia simplesmente acusá-la do crime. Nossa conversa foi se seguindo e com o passar do tempo fui despertando para a realidade, a cada segundo me fazia mais certo de que, na verdade, era a mulher que havia amordaçado aquele senhor ao chão. Quis jogá-la contra a parede.

- Você vai precisar da minha ajuda pra terminar o que começou? - perguntei à sedutora.
- Em breve ele morrerá. Quando isso acontecer, você não vai conseguir se livrar dele sozinho. Vai precisar da minha ajuda, minha mão pode ser bem útil pra você. - e sorria um sorriso sádico enquanto dizia essas palavras. Não me segurei, o desespero superou a frieza e bradei na frente dela.
- Mas foi você que o matou!
- Não, não fui. Eu apenas o ajudei. Você chegou aqui sozinho, mas nesse quarto o criminoso é você.
- Como, se eu não me lembro de nada?
- Você não se lembrará enquanto não assumir seu ato.

Senti o peso de todas as incoerências, dúvidas e incertezas que há no mundo. Por um segundo, desesperado, me dei conta de que quem agrediu aquele senhor que parecia inofensivo, fui eu. Ainda mais inconsciente do que havia feito, pedi ajuda da sedutora: - vamos colocá-lo no porta malas do meu carro, está parado na porta do hotel.

Naquela madrugada não havia funcionários no corredor e aparentemente, na rua também não. Enquanto carregávamos o corpo - ainda vivo - daquele senhor, fomos passando pelas portas dos quartos e seguimos para o salão de entrada. Havia pouca iluminação, passamos pela porta e chegamos ao carro. Quando o coloquei no porta malas, olhei para a mulher. Ela continuava sádica. Foi quando eu me lembrei de tudo. 

O senhor estava comigo no quarto do hotel (eu fui lá encontrá-lo) e me aconselhando sobre algo. Era uma espécie de sábio. Enquanto conversávamos, me enojei de suas falas e não o entendia. Começamos a discutir mais alto, nos exaltando, quando por fim me tornei incontrolável. Não me recordo da agressão, é como se tivesse acordado após o infame terminar. A mulher parecia ter presenciado tudo, de longe, sussurrando coisas absurdas em meu ouvido.

- Agora eu me lembro. - disse em lágrimas.
- Solte-o agora e feche o porta malas. Eu assumo daqui. - respondeu a mulher, ignorando minhas palavras. Pela primeira vez, ela estava séria.
- E o que você fará com ele? 
- Ele quem? - riu.

Olhei para o porta malas vazio. O senhor desapareceu bem debaixo dos meus olhos. Nesse dia, a mulher chamada loucura foi minha cúmplice. Me fez perceber que eu não matei o sentido... ele nunca havia existido. Me encontrava agora sozinho, na pior das companhias.

Não se sinta tão indiferente, todos somos loucos, só depende do ponto de vista.


T. Rodrigues