segunda-feira, 30 de abril de 2012

Corpo perdido


Três meses em coma.

Uma mantra de possibilidades me norteava enquanto desacordado. Via a situação de cima e parecia ser melhor continuar assistindo meu corpo se deteriorar de camarote. E nem por um segundo senti dor ou remorso: me sentia justificado. Assistia as pessoas entrando na sala, me olhando naquela situação e sentindo pena, compaixão, ou qualquer outro sentimento que tente justificar uma opinião formada sem empirismo. Um medo obtido pela total falta de compreensão. Talvez o ditado esteja certo: As pessoas temem o que não conhecem.

Essas pessoas entravam e se colocavam como juízes da vida. "Meu Deus, por quê?", "que pena, um médico tão brilhante!", "tão novo para sofrer assim!". Enquanto as assistia, me perguntava o por quê de tanta lamentação. Estava feliz por estar naquela posição. Me via vivo, mesmo estando em coma. Me sentia feliz, mesmo sendo uma imagem refletida no espelho que parecia ter uma percepção extra-sensorial.

"Afinal, essa é a vida. Coisas ruins acontecem a pessoas boas." eles diziam. E assistiam aquele corpo vazio deitado na cama, sem compreendê-lo. Para mim, eles que se encontravam em coma. Seus corpos se encontravam muito mais vazios do que o meu.

Andavam vazios em suas vidas. Pessoas com família, filhos, esposas e maridos, todos vazios por dentro. Não compreendiam que cada dia é uma benção, e que o amanhã é incerto. Dos que juntam suas mãos em oração para ratos no oriente, para o crucificado ou qualquer outro: Mal entendiam que cada dia é uma dádiva, dada por alguém ou pelo acaso, mas ainda uma dádiva. Os que entendiam tomavam atitudes erradas quando à frente de tal revelação. Achavam que boas ações tornariam suas almas justificadas, e garantiriam seus lugares no paraíso.

Eu os assistia gritar para o vento suas confissões. Homens traídos andando sobre um mar de convicção. Vazios. Filhos esperavam por pais em casa que nunca lhes davam tempo ou a atenção que precisavam. E quando adultos, confundiam o valoroso com o útil, e acabam por gastar suas vidas conquistando dinheiro suficiente que preenchesse seus vazios interiores. E todo o dinheiro do mundo seria pouco demais.

Me encontrava mais preenchido do que nunca, o vazio cabia melhor dentro de mim do que eu mesmo. As verdades que disse antes, agora vingariam. Meu corpo  parecia fazer juízo quanto a distância inacabável que o universo proporciona. Uma lei simples: A luz que se propaga nas trevas, não o contrário. E quando a hora de ceder chegasse, a experiência seria outra. O coração batia, o pulmão fazia seu trabalho, todos tentando me manter na escuridão. Acordar parecia opcional, o lugar em que me encontrava parecia muito mais claro. E nessa lucidez ao contrário, as pessoas entravam e choravam por mim.

Me visitavam como se eu fosse vítima da situação. Quando na verdade, eles olhavam para a maca querendo  meu lugar, e nem sabiam.

T.Rodrigues

quarta-feira, 25 de abril de 2012

O garoto e a bicicleta



Era um menino de uns 11 anos, que andava de bicicleta na rua da sua casa e se divertia muito, quando em uma das curvas que ele fez na esquina, caiu num tombo feio. Sua mãe (que assistia de longe) foi lá socorrê-lo de imediato e viu o garoto com o braço sangrando, mas ele estava bem. Depois do susto, decidiu analisar melhor.

- Ai mãe! Tá doendo!
- Eu sei filho, mas vai passar. Deixa eu ver isso aqui. - respondeu vendo o braço do garoto, onde havia um corte pequeno e percebeu que tinha sido profundo - Nossa... Machucou feio! Acho que vamos ter que dar pontos nisso ai.
- A mãe, hospital não, por favor!
- Não tem jeito. Vou ter que te levar.
- Tá doendo muito... Nunca devia ter subido naquela bicicleta. Agora vou ter que ir pro hospital por causa dela! Não ando de bicicleta nunca mais!
- Não diga isso, não é por que você caiu que vai querer parar de andar de bicicleta.
- Vou sim - respondeu o garoto fazendo uma cara feia - a minha está toda quebrada agora!

A mãe deu um tempinho pra o garoto se recompor. Eles foram pra casa e ela levou consigo a bicicleta (ou o que restava dela). Algum tempo depois envolveu o lugar do corte com uma toalha limpa e se preparava pra colocar o garoto no carro e ir para o hospital. Quando ele se acalmou, a mãe decidiu continuar o assunto.

- E ai, melhor? - perguntou a mãe.
- Estou, só esse braço que está doendo. Maldita bici... - e foi interrompido por um tapa carinhoso, ele já sabia que era por causa do "maldita".
- Vou te comprar uma bicicleta nova amanhã. - respondeu a mãe.
- Mas eu não quero outra, eu queria a minha! E agora não vou ter mais, por que está toda quebrada. Acho que não volto a andar mais nesse negócio.
- Ora! Claro que vai! Ou você acha que por causa de um tombo e por ela ter quebrado, você nunca mais vai querer andar?
- Ela era especial pra mim! Gostava tanto dela. E o tombo vai deixar uma cicatriz aqui no braço - alisou o lugar e constatou que mesmo pequeno, realmente deixaria uma cicatriz - e se um dia eu quiser andar de novo, vou olhar pro meu braço e me lembrar desse tombo e provavelmente não vou querer andar mais.
- Mas não é assim que a vida funciona meu filho. A gente cai, de vez em quando ficam marcas, mas é assim que funciona! As cicatrizes fazem parte de quem você é, hoje você está chorando por ela, mas amanhã quando olhar pro seu braço vai rir e vai pensar no quanto você se divertia andando nela!
- É mãe, talvez você tenha razão. Mas quando eu lembrar o quanto me divertia, só vai dar mais vontade de andar nela de novo - concluiu triste.
- Mas você pode ter outra bicicleta depois dessa. Não é por que essa foi a mais divertida, que a próxima não será! E se você cair de novo e quebrar outra, não tem problema. Sempre existirá uma bicicleta nova esperando por você em algum lugar e quando você menos esperar vai perceber que pode se divertir de novo, pedalando.

Mais tarde, já em casa, o menino ficou pensando naquela conversa. Nesse dia, ele foi para o hospital e voltou com 3 pontos no braço. Quando foi dormir, nem lembrava da conversa que tivera com sua mãe. Para ele, aquela bicicleta quebrada (agora quase sem valor) representava muito mais que um brinquedo qualquer. Era a mais importante que ele já teve, mesmo durando pouco como durou. Olhando pro seu braço, enfaixado pelos pontos, chorou um pouquinho. Não pela dor, nem doía mais. Ele chorava por que não ia ter a bicicleta pra andar de novo e pensou seriamente em nunca mais andar em uma. Como eu disse, ele já tinha esquecido dos bons conselhos de sua mãe.

Quantas vezes não somos assim? Nossa bicicleta vale tanto pra gente, que se ela quebrar, talvez também pensemos em abandonar as duas rodas. O que é engraçado, por que o coração é um ciclista que cai frequentemente, quase sempre com tombos que deixam cicatrizes.

E agora olho pro meu braço, enfaixado.

T.Rodrigues


Concluso

Quando a voz calou-se,
choveu tristeza
os ipês continuam roxos, mas mortos
o que era alento tornou-se inquietude
Quando a voz calou-se.

Quando o conforto se foi,
deu lugar a apatia
o maior vazio preenchido que vi
caiu no paradoxo mais simples do mundo
Quando o conforto se foi.

Quando me perguntaram "por que tão triste",
a resposta me parecia óbvia
a escuridão é sempre maior que a luz
exemplo disso é o universo
não sobra sol após um dia de doze horas
Quando me perguntaram "por que tão triste".

T.Rodrigues

terça-feira, 24 de abril de 2012

Veio e não saiu

Sou grato por nunca ter vivido próximo da água,
por que assim eu nunca me acostumei com a praia.
E me sinto grato por não ter crescido sob uma montanha,
para saber o quão alto o mundo pode ser.

Sou grato por apenas imaginar o momento.
Grato por ela nunca ter se apaixonado por mim.
Me sinto estranho por não pensar igual,
observo os que trocam sonhos por explicações,
numa tentativa absurda de se divertir.

O truque do amor é nunca deixá-lo te encontrar.
Talvez seja fácil superar esquecendo.
A gente acaba sabendo o "como" e o "onde",
mas nunca o "agora" e o "depois".

Por que o adeus veio, mas de mim ela não saiu.

T.Rodrigues

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Entre o Simplício e o Orgulhoso

- Você acredita em segundas chances? - perguntou o simplício ao orgulhoso.
- Não existe esse tipo de coisa. Quando acaba, acaba.
- Mas e se a gente quiser, como que que faz?
- Não sei, esquece, ou desiste. Deixa pra lá. 
- Mas eu sinto que tem mais coisa por vir.
- Se você sente, sente errado. Afinal, não foi você que quis assim?
- Foi, mas a falta que me faz machuca.
O orgulhoso nem exitou em responder: - Mas se machuca, é por que você deixou de querer.
- Ora, mas que bobagem! Claro que quero, eu sinto falta!
- Se você quisesse de verdade não machucaria. Onde está o seu orgulho? Esquece da falta, esquece dela!
- Pra você parece fácil, parece possível. - o simplício respondeu com tristeza.

E para o simplício parecia impossível mesmo. A cada dia que se passava ele ouvia mais besteiras, e as pessoas diziam com sorrisos falsos: "calma, você vai se acostumar", "fica tranquilo, melhor remédio pra dor é esquecer!" ou a pior das falácias: "só se esquece de um amor com outro!". Mas pra ele não era assim. A vida pra ele se tornara um quarto escuro, de noite, quando a gente tenta dormir e não consegue. E a noite começa e se prolongar. E os pensamentos começam a vir. E os corredores na mente começam a se formar. Aquelas frases soltas na cabeça da gente, aquelas mil maneiras de pensar na mesma situação.

E as horas se arrastam:

"Eu poderia estar errado."

"Eu poderia estar pronto."

- Deixa esse orgulho de lado e vai atrás dela, vai fazer bem pra você. - implorou ao orgulhoso.
- Lá vem você com suas idéias erradas! Se recomponha primeiro, e depois a gente pensa nisso. - disse com  agressividade, pois o simplício estava em pedaços.
- Não me venha com essa de "se recomponha". O que vale é o agora. Corre atrás dela enquanto é tempo!
- Mas eu tenho medo. - pela primeira vez o orgulhoso confidenciou com sinceridade.

E o orgulhoso tinha medo mesmo. Não era apenas o fato de não acreditar em segundas chances, tinha mais coisa envolvida. Aliás, no fim, o que mais preocupava o orgulhoso era o "tem tanta coisa envolvida". Só que a pergunta que mais o assombrava, nada tinha a ver com segundas chances.

A pergunta era simples. O que vem depois do adeus?

- Você acha que ela está melhor sem mim? - disse o orgulhoso, deixando o orgulho de lado e perguntando baixinho.
- Claro que não! Quer dizer, não sei... Não sei o que ela queria. Ou o que quer.
- Eu mudaria por ela sabe. Deixaria o orgulho de lado pra ver ela sorrir mais uma vez. Mas queria que ela lutasse por mim, não me deixasse ir assim tão fácil. Talvez isso prove que ela não quer mais, não sei. Mas esperava ver o que tem de errado comigo, pra dizer que sempre foi assim. E depois consertar. É triste demais. - o orgulhoso concluiu, e a tristeza era tanta que o orgulho parecia ter ido embora.
- Talvez ela sinta sua falta. Não desista!
- Talvez desistir seja um dos maiores atos de coragem meu amigo.

E talvez seja. 

O que penso é que depois do adeus vem a saudade. E depois da saudade vem o arrependimento. Mas talvez ela não se arrependa. Talvez seja a hora de eu pular desse barco, e nadar com os peixes, me apaixonar por eles... E devorá-los no final. E quem sabe no fim eu aprenda que os peixes são mais bonitos de longe. Talvez não exista mais lugar pra mim na sua embarcação, mas peço que não navegues pra longe. Por que te perder de vista dói, e dói muito.

E no fim, se você reparar, vai perceber que o simplício é o meu coração, e o orgulhoso é minha mente.

T.Rodrigues

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Diálogo no Jardim

- Vem - disse a rosa ao olhar para mim - e me canta uma canção bonita, uma canção que me alegre! E quando não puderes mais cantar, vai-te e prepara-me uma nova.

E coloquei-me a cantar a mais bela canção que pude. Na canção se falava de rosas, se falava de olhos verdes e de fábulas. Pena que minha rosa não sabia que minhas canções cessariam quando voltasse. Mas ela me pediu, logo não poderia fazer algo além de cantar-lhe a canção.

Era jardineiro fiel, gostava das rosas e elas gostavam de mim. Quando visitava o jardim, podava-lhes as folhas, cuidava de seus potes e dava-lhes água. Quando cuidei, me fiz necessário. E necessário continuei.

No outro dia pela manhã, ao avistar minha rosa pude tratá-la novamente.

- Que bom que viestes! - disse minha rosa a avistar-me.
- É claro que vim minha flor, pois tenho que cuidar de ti.- disse com carinho, e vestido de um pequeno sorriso.
- Mas se vens, vens por que deseja, e cuidas de mim por que quer. Logo, se assim o faz, fico feliz.
- Obrigado. Mas venho sempre sim. Pois pra ti sou necessário.

E os dias passam no meu jardim, e a rosa vai crescendo, desabrochando, e junto com a primavera vem suas melhores pétalas, seus melhores cheiros. E quando podia, ela me chamava pra lhe fazer carinho, cuidar dela, mesmo quando não era necessário. E me pedia novas canções, novos hinos e carícias. E nessas canções, encontrava a felicidade da minha rosa, e nela encontrava a minha. E quando os cuidados se faziam algo além do necessário, me tornei útil. Ora, a rosa precisava de água para viver, logo, eu lhe fazia viver, pois trazia sua água todos os dias. Ora, os ouvidos da minha pequena se faziam sedentos por novas canções, eu as cantava, logo, eu poderia saciar sua sede. E quando assim o fiz, me tornei útil. E útil continuei.

- Meu dono, tenho algo a lhe perguntar. - disse minha pequena flor, e continuou - se traz-me água e mata minha sede, sinto-me viva. Se vens e toca suas canções, sinto-me amada. Se és necessário, e útil, falta-te ser amado também, mas não sei como fazê-lo.
-  Ora minha pequena, pois se sou necessário assim o farei. Se sou útil, assim o serei. E quanto a amar-me, esqueces disso! Pois o amor vai além do domínio do homem. Amas por quê amas, e assim o farás. O amor só é compreendido em si mesmo, pois só ama quem ama em si.
- Mas se tu és necessário, e útil, com posso não amá-lo? - perguntou-me, e senti sua cabeçinha de pétalas com uma dúvida tão cruel que sua carência tocou meu coração.
- Minha pequena, quando me amares, saberás. - dei-lhe-a um beijo e fui embora.

E quando lhe disse sobre o amor, novas perguntas surgiram na cabeça de minha pequena. E quanto as perguntas, sempre as respondia com minhas melhores filosofias, e minha rosa amava meu jeito de ser, mas não me amava ainda. Não fazia diferença, pois no fundo sabia que a amava por amar em si, e nada lhe pediria em troca. Sempre perguntas, mas jamais dúvidas. E quando as perguntas vinham, eu as respondia, como jardineiro fiel. Pois a amava, e quando assim o fiz, me tornei valoroso. E valoroso continuei.

Pois o inverno veio, e com ele a dúvida. Pus-me a regá-la com mais frequência para que não sentisse sede, e lhe fiz uma redoma para que os insetos não a machucasse. E quando suas folhas caíram, expliquei que o velho dava lugar ao novo na primavera. E quando a primavera veio lhe tirei a redoma, e me fiz mais observador.

Mas as chuvas da primavera vieram, e regaram minha rosa, e já não era preciso que eu fosse ao jardim para que a regasse. Pois quando assim se sucedeu, deixei de ser necessário. E o fim das chuvas veio, e com ele os passarinhos também. E cantavam novas canções, e visitavam minha rosa todos os dias. E quando cantavam, minha flor viu que não precisava de mim para que fosse ao jardim cantar para ela. E ali lhe ocorreu que não eu não era mais útil. E quando os passarinhos se foram, as abelhas vieram, e cheiravam minha rosa com suas asinhas de inseto, e sem machucá-la iam embora. Logo, quando minha rosa percebeu que não precisava de mim para lhe fazer carícias, deixei de ser valoroso.

E minha rosa seguia feliz pelo campo, mas não precisava mais de mim para isso. 

E quando já não era necessário, nem útil, nem valoroso, notei que na verdade eu é quem devia entender o que o amor é. Pois na minha falta não notada, percebi que como jardineiro fiel lhe fiz feliz enquanto pude, e da melhor maneira que consegui. Mas quando não era mais necessário, nem útil, nem valoroso, fui-me embora, e deixei de ser jardineiro. Pois não cuidava mais de rosa alguma.

E quando fui-me embora do campo, percebi que na verdade, quem me ensinara sobre o amor era a rosa, e dele eu nada sabia. Pois o amor permanece em mim, mesmo não sendo mais seu jardineiro. E a falta que a rosa faz não posso medir, mas atenho-me ao fato de que, se a felicidade da rosa está na minha ausência, ausente serei.

E quando deixei de ser necessário, e útil, e valoroso, me tornei ausente. Me tornei memória. E memória continuei.

T.Rodrigues

sábado, 7 de abril de 2012

Tão perto e tão longe

"Há algumas coisas que queria te dizer meu bem, mas preferi guardar. Há coisas que queria te mostrar, mas não pude, e não sei se poderei. Distante. Menos meu. Menos seu. Me ocupo quando não sei se a culpa é de quem culpa, não me culparei.

Saber o que sou. O que sou pra mim e o que sou pra você, já não sei meu lugar. Nas estradas, na distância que percorri, sozinho, mas querido. Agora não mais. Pode ser pedir demais. Posso estar errado, talvez esteja. Mas faz bem ser querido, faz bem gostar um pouco. Senão, pra quê? Se não faz falta, pra quê fazer..."

T. Rodrigues

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Discurso de Um Rei de Lugar Nenhum

PORTINARI, Candido

E colocando-se de pé, subiu no palanque e começou um discurso pra ninguém:

“Boa tarde meus fiéis, amigos ou não, habitantes do reino. Sinto-me feliz em dizer hoje que reino sobre vossas cabeças. O papel do rei é admitir e zelar pela vossa vida, dando-lhes condições para que desempenhem o vosso papel quanto cidadãos. Quanto súditos. E fico feliz por ater-me a essa meta. Digo-lhes hoje, fiéis, que desempenho esse papel com êxito. Aos que me escutam, sinto que cumpri com meu dever. O peso que vossa vida tem sobre minha cabeça real, é um fardo que consigo carregar com vigor. E fico feliz em ser rei de um reino tão promissor.

Em meu reino não tenho problemas com fome, vós sois fortes e saudáveis. Não tenho problemas com a felicidade de vós outros, pois não recebi reclamações quanto à vida que a vós foi designada. Não ouço o choro das crianças, o pesar dos adultos nem a reclamação das mulheres. Sinto-me realizado. Quando o povo se cala, o silêncio é a prova do consentimento. Quando o povo não protesta, prova que seu governo é eficaz. Quando o silêncio é a arma, a estagnação é a moeda de compra. Sinto-me feliz de reinar num lugar onde não há reclamação quanto a minha política e didática de soberania.

Sou rei, independente de meus súditos. Sangue real é sangue real independente das circunstâncias. Os únicos que podem me tirar do poder estão em silêncio agora. Por isso estou feliz. Pois sou o melhor rei que meu povo poderia pedir. Vir a vós hoje e discursar é simples. Faço-me discurso vivo. Enquanto vocês não me calam, posso discursar a vontade. Posso exercer meu papel sem problemas.

Tomem como exemplo outros reinos. Imaginem! Lugares onde há barulho, onde há protesto, onde há súditos que discordam de seus reis e rainhas. Reis desgraçados à sós sois! Quando se deitam em seus aposentos reais à noite, sentem o peso de seu pecado. Nem o sangue real consegue limpá-los. Pois dão ouvidos os seus povos, se preocupam com a ignorância dos desfavorecidos, e atendem as exigências dos mais velhos. Que tolos! Todos nós, nobres reais, sabemos que a sabedoria reside nos velhos. E dar uma chance pra que a sabedoria deles perdure é se jogar na cova! É dar-se de comer para leões famintos! Pois o povo na ignorância é feliz, mas o povo sábio é explosivo.

Mas não em meu reino. No meu reino não dou ouvidos, não atendo a exigências, são ladainhas alheias. Olhe como meu reino funciona! É a prova viva e que desempenho meu papel formidavelmente. Pois sou rei de um reino sozinho. Sou senhor de minhas próprias idéias, e a loucura a que me acometi fez-me ver com olhos infinitos. Vi o problema e o solucionei por raiz. E o problema é simples demais para que olhos sãos possam enxergar.

Pois o povo é o problema do rei. Enquanto calados, imóveis, satisfeitos... São ótimos súditos. Mas quando percebem que estão sendo explorados, roubados em silêncio, abusados e iludidos... Unem-se de uma forma explosiva, e o reino se desfaz. O poder que tenho sobre mim é imediatamente acometido e negado. Pois é na sabedoria popular que meu imperialismo é derrubado.

Quanto a minha loucura? Não sou louco. Muito pelo contrário... A vós que estão a ouvir, reflitam agora sobre seus conceitos. Seus governos. A vós, me direciono com palavras reais. Não reais de realeza, mas reais de verdadeiras. Observai seus governos, e principalmente, a atitude de vocês quanto súditos. Sim, súditos, por que os ocidentais vieram com a ladainha da “democracia” quando na verdade o termo não é nada além de uma conversa pra convencer servos de que não são servos.

Suas atitudes enquanto súditos. Sim, pois vós sois a voz que não quis se ausentar do silêncio. Sois a espada que jaz cega por sobre a mesa do samurai, em plena guerra. Sim, sois o sal que não tempera. Pois a vós foi concedido poder, poder para revoltar-se contra os opressores, contra os malfeitores. Contra políticos corruptos e falsas idéias democráticas. Foi concedido o poder de se voltarem contra a minha pessoa, mas continuo rei. E quando meus súditos se encontram insatisfeitos, o que fazem? Calam-se.

E a vós me refiro como a “ninguém”. Pois a voz que se cala é voz nenhuma. O povo que não protesta não passa de peso vivo. Onde a loucura reside agora? A mim que discurso a ninguém, ou a vós outros, parte de um todo maior que, quando somados, são iguais a zero?

A isso vos saúdo! A isso lhes agradeço, por tornarem-me rei tão feliz. Por serem igual a reino nenhum, a povo nenhum, e meu discurso vazio não passa de uma realidade a muito vivida por vocês. “Pois quando calados, me fazem feliz, e assim continuarão.”

E aplausos vieram de algum lugar. Ouviram-se gritos de fervor. Naquele dia os reis sorriram, e os súditos continuaram suas vidas vazias como um povo, como um nada.


T. Rodrigues