sexta-feira, 6 de abril de 2012

Discurso de Um Rei de Lugar Nenhum

PORTINARI, Candido

E colocando-se de pé, subiu no palanque e começou um discurso pra ninguém:

“Boa tarde meus fiéis, amigos ou não, habitantes do reino. Sinto-me feliz em dizer hoje que reino sobre vossas cabeças. O papel do rei é admitir e zelar pela vossa vida, dando-lhes condições para que desempenhem o vosso papel quanto cidadãos. Quanto súditos. E fico feliz por ater-me a essa meta. Digo-lhes hoje, fiéis, que desempenho esse papel com êxito. Aos que me escutam, sinto que cumpri com meu dever. O peso que vossa vida tem sobre minha cabeça real, é um fardo que consigo carregar com vigor. E fico feliz em ser rei de um reino tão promissor.

Em meu reino não tenho problemas com fome, vós sois fortes e saudáveis. Não tenho problemas com a felicidade de vós outros, pois não recebi reclamações quanto à vida que a vós foi designada. Não ouço o choro das crianças, o pesar dos adultos nem a reclamação das mulheres. Sinto-me realizado. Quando o povo se cala, o silêncio é a prova do consentimento. Quando o povo não protesta, prova que seu governo é eficaz. Quando o silêncio é a arma, a estagnação é a moeda de compra. Sinto-me feliz de reinar num lugar onde não há reclamação quanto a minha política e didática de soberania.

Sou rei, independente de meus súditos. Sangue real é sangue real independente das circunstâncias. Os únicos que podem me tirar do poder estão em silêncio agora. Por isso estou feliz. Pois sou o melhor rei que meu povo poderia pedir. Vir a vós hoje e discursar é simples. Faço-me discurso vivo. Enquanto vocês não me calam, posso discursar a vontade. Posso exercer meu papel sem problemas.

Tomem como exemplo outros reinos. Imaginem! Lugares onde há barulho, onde há protesto, onde há súditos que discordam de seus reis e rainhas. Reis desgraçados à sós sois! Quando se deitam em seus aposentos reais à noite, sentem o peso de seu pecado. Nem o sangue real consegue limpá-los. Pois dão ouvidos os seus povos, se preocupam com a ignorância dos desfavorecidos, e atendem as exigências dos mais velhos. Que tolos! Todos nós, nobres reais, sabemos que a sabedoria reside nos velhos. E dar uma chance pra que a sabedoria deles perdure é se jogar na cova! É dar-se de comer para leões famintos! Pois o povo na ignorância é feliz, mas o povo sábio é explosivo.

Mas não em meu reino. No meu reino não dou ouvidos, não atendo a exigências, são ladainhas alheias. Olhe como meu reino funciona! É a prova viva e que desempenho meu papel formidavelmente. Pois sou rei de um reino sozinho. Sou senhor de minhas próprias idéias, e a loucura a que me acometi fez-me ver com olhos infinitos. Vi o problema e o solucionei por raiz. E o problema é simples demais para que olhos sãos possam enxergar.

Pois o povo é o problema do rei. Enquanto calados, imóveis, satisfeitos... São ótimos súditos. Mas quando percebem que estão sendo explorados, roubados em silêncio, abusados e iludidos... Unem-se de uma forma explosiva, e o reino se desfaz. O poder que tenho sobre mim é imediatamente acometido e negado. Pois é na sabedoria popular que meu imperialismo é derrubado.

Quanto a minha loucura? Não sou louco. Muito pelo contrário... A vós que estão a ouvir, reflitam agora sobre seus conceitos. Seus governos. A vós, me direciono com palavras reais. Não reais de realeza, mas reais de verdadeiras. Observai seus governos, e principalmente, a atitude de vocês quanto súditos. Sim, súditos, por que os ocidentais vieram com a ladainha da “democracia” quando na verdade o termo não é nada além de uma conversa pra convencer servos de que não são servos.

Suas atitudes enquanto súditos. Sim, pois vós sois a voz que não quis se ausentar do silêncio. Sois a espada que jaz cega por sobre a mesa do samurai, em plena guerra. Sim, sois o sal que não tempera. Pois a vós foi concedido poder, poder para revoltar-se contra os opressores, contra os malfeitores. Contra políticos corruptos e falsas idéias democráticas. Foi concedido o poder de se voltarem contra a minha pessoa, mas continuo rei. E quando meus súditos se encontram insatisfeitos, o que fazem? Calam-se.

E a vós me refiro como a “ninguém”. Pois a voz que se cala é voz nenhuma. O povo que não protesta não passa de peso vivo. Onde a loucura reside agora? A mim que discurso a ninguém, ou a vós outros, parte de um todo maior que, quando somados, são iguais a zero?

A isso vos saúdo! A isso lhes agradeço, por tornarem-me rei tão feliz. Por serem igual a reino nenhum, a povo nenhum, e meu discurso vazio não passa de uma realidade a muito vivida por vocês. “Pois quando calados, me fazem feliz, e assim continuarão.”

E aplausos vieram de algum lugar. Ouviram-se gritos de fervor. Naquele dia os reis sorriram, e os súditos continuaram suas vidas vazias como um povo, como um nada.


T. Rodrigues

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